É Nascido…

Eram seis horas da tarde, domingo. Pleno verão, mês de janeiro. Durante o dia tinha chovido bastante e, no sertão do Piauí uma chuva forte enche todos os riachos com uma velocidade estonteante. No resto de tarde, ainda tinha resquícios do temporal; coriscos esparsos, céu cor de chumbo, nuvens ainda carregadas. Um vento suave entrava pelas frestas dos caibros e telhas, um cheiro gostoso de chuva, de mato molhado. A cada corisco, o chão tremia, a claridade surgia intensamente de todos os lados, como a alumiar bons dias vindouros; de fato. Essa não iria ser uma noite qualquer.

Ele, todo acabrunhado, pois este era o primeiro; nervoso e alegre. Coração saltitando na goela. Uma “caninha” de vez em quando aliviava, mas já o deixava bêbado. Bêbado de alegria e de cachaça também. Os cafés saiam um atrás do outro amenizando o álcool e o deixava desperto; e mais nervoso – cafeína. Manter o fogão a lenha aceso, não era tarefa das mais fáceis. Alguns gravetos e uns pedaços de marmeleiro e sabiá “aqueciam-se” amontoados ao redor do fogão; estavam secando. O bule de ferro esmaltado, verde com umas flores brancas pintadas sem nenhuma arte ou zelo, ficava ao lado da boca da chapa, e mantinha o café aquecido. Quando se queria o café, dava uma assoprada na brasa, depois umas abanadas com um velho abano de palha de carnaúba, com as pontas esgarçadas,… aguardava um pouco, colocava um gravetinho e uma chama aparecia meio desconfiada, mas já ajudava; depois, café quentíssimo. Quando acabava o pó de café, o que aconteceu, era preciso bater uns grãos torrados no pilão. Esses grãos, eram torrados com rapadura raspada a faca, numa grande panela de ferro. Quando eram retirados, logo endureciam, ficando todos os grãos grudados pelo melaço da rapadura. Ao “grude” que ficava na panela, jogava-se uma água e, daí era feito um café tão forte e escuro, que parecia sangue de peba, como diziam.

A casinha era pequena, paredes de adobes, bem caiada, bem conservada. Uma salinha, uns tamboretes com o tampo de couro cru. O quarto, era menor ainda; havia ao lado, um outro cômodo, menor, onde era posto as espigas de milho e uns sacos de feijões com areia; isto evitava os bichinhos que adoram feijão cru. Depois era só bater numa urupemba e cozinhar.

A cozinha, ficava contígua à sala; móveis na casa? Até o momento, duas redes, uma panela, o tal do bule, umas colheres já meio tortinhas, dois pratos de ferro esmaltado em branco, com as beiradas azuis, e umas lascas de esmalte faltando. Duas canecas de plástico, meio amareladas pelo uso do café. As vezes leite. Um pote de barro numa prateleira de madeira ordinária, com água do riacho já decantada, uns canecos de alumínio e um côco de alumínio também, para retirar a água do pote. O chão da casa, era de barro batido com um cepo e  surrão jogado no chão, e batia-se em cima dele, socando o barro; antes era salpicada água, para não levantar poeira. Ficava o desenho do surrão no chão.  Nas paredes, se se olhasse com cuidado, se percebia uns buraquinhos, casas de maribondos, daqueles que ficaram especializados em furar adobes. No buraco depois de pronto, entravam de ré, de frente só na construção. Não incomodavam 

No quintal com umas galinhas soltas, esgueirando-se nas beiradas da casa, preparando-se para dormir; todas com as penas ainda encharcadas. Uns piados de pintinhos escondidos sob as asas de algumas. Talvez com frio! Um cercadinho coberto com palha e alguns “capões cevados”. Cevados, por que era socado milho cozido goela abaixo, com o dedo, e arrastando goela abaixo com a mão, para não entalar o bicho, até ficar com o papo “caruçudo”. Engraçado, não lembro de frango com indigestão, mesmo com essa comida toda. Os capões seriam abatidos, para fazer caldos e sopas, enquanto de resguardo. A sentina, ficava atrás da cerca do quintal mesmo; para limpar as partes, uns apelavam para o sabugo de milho. Quando não havia sabugos, usavam-se as primeiras folhas ao alcance da mão… quando era urtiga, danação! Papel de qualquer espécie era coisa de alto luxo.

Zé saiu para fazer um cigarrinho de palha. Pegou o rolo de fumo de corda, foi até o quartinho, escolheu uma palha da espiga de milho, foi ao alforje de couro e procurou a faquinha já carcomida de tanto ser amolada, arrastou o banquinho para fora da casa e começou a cortar em tiras bem fininhas o fumo, aparando com uma mão; depois macerou e enrolou na palha de milho. Foi ao fogão, pegou um tição, acendeu o cigarrinho e deu gostosas baforadas. Voltou a sentar no tamborete do lado de fora. A noite já se achegava. Pensava. Amanhã vai ser um dia diferente. Um relâmpago! Um grito vindo de dentro da casa, do quarto.

– Zé Adauto!

– Que foi Raimunda?

– Levei um susto com o “truvão” e senti uma fisgada forte no “pé do bucho” – era agora. Agora a coisa começava para valer. Estavam somente os dois e quando ele chegou de tarde todo encharcado, a mulher já havia alertado sobre essas “fisgadas”.

– Que faço Raimunda?

– Chama a “Madim Rosinha” – Madrinha Rosinha era uma senhora rechonchuda, tia do Zé. Criava-o desde os 12 anos; era filho de uma irmã sua. Correu à sua casa, ficava quase ao lado. Encontrou-a sentada, jantando.

– Padim Bubú, “Madim” Rosinha, a Raimunda começou a sentir “as dor do parto”. Vamos lá que ela ficou sozinha.

Lentamente, o velho pegou a corrente da qual pendia um relógio de bolso, de prata. Consultou as horas e foi anotar no caderninho capa de couro, onde tinha já anotado um monte desses eventos.

A dita casinha ficava a umas 100 braças da pequena sede da fazenda. Quando o Zé veio para a fazenda, foi imediatamente adotado como um filho. Recebia todas as atenções e era cercado de mimos. Dona Rosinha e seu Chico Sales, não tiveram filhos. Então eles já esperavam o “neto” com a igual ansiedade da jovem futura mamãe.

Entraram os dois apressados na casinha. Já foram ouvindo um outro grito lá de dentro. Agora começaria uma verdadeira maratona para o Zé.

– Zé, vai correndo chamar a “cumade” Curica! – gritou dona Rosinha. Comadre Curica, era o apelido de dona Antônia, parteira da região. Todos os moleques e molecões a chamavam de “cumade Antonha”.

Zé pensou nas duas léguas de ida e nas de volta. Dona Antônia morava na Lagoa da Descoberta e, fora os partos que fazia, vivia de fazer chapéus de palha. Fazia uns chapéus diferentes, pesados, a palha era trançada e depois dobrada, fazendo umas escamas, bonito chapéu.

Selou a égua numa correria e logo já estava cavalgando. Não se esquecera da “peixeira” já enfiada na luva da cela, nunca se sabe nestas paragens a noite. Ele não sabia o que o aguardava à frente. Começou a chover forte novamente e a trovejar e aqueles coriscos clareavam tudo ao redor. Tinha medo dos coriscos, pois vira um caindo no oitão da casa, ao lado da sua rede, quando era menino. Foi um corte na alma que ainda não cicatrizara.

A sede da fazenda ficava num morrete, com dois riachos, um de cada lado. Os riachos eram pertos da casa, com nomes esquisitos, Pinguela e o outro mais ainda, Varjota; este, o Zé teria que atravessar agora. Quando começou a descer na escuridão da noite, ouviu o chapinhar da água pelas patas da égua. “Vixe Maria, a Varjota tá na vazante”. Ou seja, tem um riacho caudaloso para atravessar pela frente. Avançou devagar e pensando nas quantas vezes que teve de atravessar os “burregos” na cabeça, quando as ovelhas ficavam presas do outro lado, se não as buscasse, os filhotes seriam arrastados pela correnteza, pois as danadas das ovelhas cismavam em atravessar a nado o riacho. Uma vez ou outra, uma se afogava.

Iria levar consigo, somente a esteira de palha, pois ir no “osso”, era contar com assaduras na certa depois. Tirou a roupa, ficando somente de calção de algodão – e dizia que gostava “de criar o bicho meio solto!”. Fez uma “rudia” com as roupas e prendeu na cabeça, passando com o cinto pelo queixo. Tudo pronto, deu umas palmadas na égua, a bicha deu umas espirradas, mas começou a entrar na água e logo estava nadando pro outro lado, sozinha. A correnteza a arrastava um pouco, mas ele a esperou “dar pé” do outro lado, viu-a chegar e o barulho dela sacudindo o pelo e espirrando – éguas espirram! Foi um pouco mais arriba pra tirar a correnteza e foi entrando, até a água chegar no peito, então começou a nadar “em pé”. Zé se gabava dessa sua habilidade, nadar em pé. Aquela travessia, quanto mais caudaloso o riacho, mais fascinante era.

Montou na égua e saiu galopando no “osso”. Na travessia, o habilidoso Zé, deixou escapar a esteira. Agora era sair do remanso do riacho que atravessou montado, com a água no peito da égua. Apercebeu-se também, que com todo aquele furdunço, os efeitos da cachaça tinham passado; ao longe já avistava umas luzes de candeeiro, frestando portas e janelas, era a Vereda. Quantas festas já tinha vindo neste lugar.

Zé Adauto tinha um conjunto de forró. João Tetô no pandeiro, Corinto na zabumba, Antonio Marcelino no triângulo e João Simão no bandolim. Já eram até conhecidos na região: Forró no Córrego, Saco do Elpídio, Sertão-de-dentro, Pega-Bem, Freixeiras, Cupins, Lagoa da descoberta, Boqueirão, São Paulo, Bangüê, …

– Zé, aonde tu vai homem? – Perguntou um amigo, que estava ao peitoril.

– Vou buscar a “cumade Antonha”.

– Tua mulher vai descansar? – empertigou o outro.

– Tá c’uas dores, vou indo. Zé sabia que ainda tinha um rio a frente, o rio Vargem Grande. Esse não dava para atravessar a nado com certeza, tinha uma correnteza muito forte, tinha que deixar a égua do lado de cá. Ia atravessar uma pinguela, fixadas com tábuas. Acontecia de, algumas vezes o rio levar a tal da pinguela e hoje bem poderia ser um daqueles.

A pinguela ainda estava lá, mas com a água já passando por cima. Tinha que ser rápido. Amarrou célere a égua num arbusto, pegou a calça e camisa que tinha servido também de esteira no lombo da égua, já toda engelhada. Mas era noite e aqueles detalhes pouco importava para o Zé agora. Vestiu a roupa, arregaçou as calças azuis desbotadas, enroladas até o joelho, e cruzou a pinguela. Mais a frente já num ponto alto da estrada, divisou na escuridão o tênue espelho d’água do Açude do Governo, que fora construído pelos militares. Quantos bodós já tinha pescado nesse açude. Metia as mãos numas locas dentro d’água, quando qualquer coisa se movesse, se tentava pegar. O muçum era fácil diferenciar, era literalmente uma cobra lisa! Dava uma sensação esquisita, ele escapando por entre os dedos…mas o bodó era áspero, mas era esperto também! Bodó assado na brasa, uma delícia! Da pinga acompanhando, nem falo!

Dona Rosinha estava assustada, nunca havia presenciado um parto. Já tinha ouvido os gritos, mas nunca presenciara. Desta vez corria o risco de fazer o parto. Era o que a preocupava. D. Maria Cruz entrou ofegante e disse que o compadre Bubú tinha ido avisá-la. Dona Rosinha, suspirou fundo, que alívio! Mas acontece que, D. Maria Cruz não era parteira e, começou a fazer perguntas para a comadre Rosinha, e agora? Bom, pelo menos agora ela não estava sozinha. Raimunda, dava gritos lancinantes! De repente, D. Maria Cruz viu uma mancha debaixo da rede da Raimunda. Pegou a lamparina e foi verificar. Era sangue! Mas o instante a enganou, era a bolsa d’água que havia se rompido.

– O que é? – inquiriu Dona Rosinha.

– Uma gosma.

– Sangue? Tá nascendo! Traga aquele cepo! – O tal cepo, um toco de madeira cortado com machado, como uma cadeira baixinha. Forrou com algumas dobras de lençol, e tiraram a Raimunda da rede. Uma luta! Raimunda era ela toda uma barriga – esse moleque vai ser grande, pensava. Com dificuldades, Raimunda sentou no cepo e abriu as pernas, para facilitar a passagem; forraram o chão com mais alguns lençóis. D. Maria Cruz correu para pegar a bacia de alumínio na cozinha, estava reluzindo, de tanto zelo de Raimunda pela bacia. O primeiro alvo de D. Maria Cruz, foram as garrafas de pinga do Zé. Ele havia comprado uma dúzia para o mijo do menino, dizia. Pegou uma garrafa, tampada com rolha de sabugo de milho, abriu  e colocou um quarteirão na bacia e começou a limpar a tesoura, outrora usada para cortar cabelos também. A tesoura seria usada para cortar o cordão umbilical. Dona Rosinha pegou alguns capuchos de algodão, descaroçou-os . Seria usado para fazer um fio grosso, para amarrar no umbigo. Nas folgas das contrações, Raimunda pensava no “meu bibelô”, pensava nas papinhas de goma de puba, que iria fazer – e enfiar na boca  com um dedo.

Zé chegava à casa da comadre Antônia, ela já estava acordada, pois o Zé de longe já gritara: “Oh de casa! É parto!” Era perigoso chegar de noite nessas paragens, ao menor ruído, eles pegavam numas espingardas “de ouvido”, e ficavam na espreita. Então era melhor ir avisando de longe.

– Quem é? Zé Adauto?… – Comadre Antônia era conhecida da família, pois sua filha Francisca, morava com Dona Rosinha desde pequena.

– Sou eu “cumade” Antônia, o Zé, da tia Rosinha.

– Que foi, tá nascendo teu “minino”?

– É!… saí de lá com a Raimunda com as dores e já tem mais de uma hora. Demorei muito porque a Varjota tá vazando.

– Vixe Maria, tomar banho nesta hora! Também, com esse toró.

– E tem um remanso grande também, mas a senhora passa na égua e eu vou andando… ou nadando.

– E no riacho?

– Eu lhe atravesso segurando o braço.

– Olha lá, hein Zé! Vambora.

Comadre Antônia era muito querida na região pela sua simpatia, mais pela sua fama de benzedeira. Qualquer íngua, chama a comadre Antônia. Ela chegava com uns galhinhos de não sei o quê, metia numa baciazinha de água e respingava no enfermo, no outro dia tava bom! Contavam ainda, que um dia, dormindo na rede caiu do teto – de palha -, um rolo de cascavéis, uma ninhada! No outro dia quando percebeu algo esquisito debaixo das costelas, pensou que fosse o lençol dobrado, mas!… Não acreditava no que os seus olhos viam! Chamou pelo marido, este verificou as costas e costelas de comadre Antônia, estavam cobertas de picadas das cascaveizinhas! Ela não sentiu uma dor na unha! Desde esse dia, contam, se uma cobra cruzar com ela pelo caminho, basta um olhar e a cobra morre na hora! Virou lenda!

O intervalo entre as dores, começava a diminuir, quando comadre Antônia entrou já toda despachada tomando conta da situação. A roupa ainda toda ensopada das águas. De pronto, elogiou a habilidade do nado do Zé, e aquilo massageou o tão modesto ego dele.

Comadre Antônia fez umas perguntas para a Raimunda, para as outras comadres, perguntou pela tesoura, pelo cordão de algodão que deve ser feito na hora. Tudo estava arrumado, começou a dar umas defumadas na casa, queimando uma casca de uma árvore que solta uma fumaça cheirosa; ficou dias, aquele cheirinho. E nada, nada de menino. Isso já era por volta da meia-noite quando comadre Antônia chamou o Zé. O engraçado era que todos “sabiam” que era menino.

– Zé, vá ao Pé-de-Serra, no Lauro, e vê se ele tem Parteína, e traga também os aparelhos.

Comadre Antônia começara a se preocupar, pois não se via dilatação boa dilatação, a injeção iria ajudar nas contrações e a dilatação. Pensou em passar a gillete, um pequeno corte a sangue frio, muito rápido, na parte de baixo. Lavou bem a lâmina e foi à prática, fez uma incisão tão rápida, que nem Raimunda sentiu, provavelmente porque as outras dores, seriam maiores. Após o corte, a dilatação aumentou. Começou a sangrar. E o Zé desta vez foi rápido, pois logo chegou com a injeção e as seringas, e com suas agulhas grossas, ferveu tudo rapidamente e, comadre Antônia mesmo aplicou. Agora Raimunda sentiu e resmungou.

– Já não basta a dor do parto? – E Raimunda se esperneava de dor. D. Rosinha e D. Maria Cruz estavam hipnotizadas com tudo aquilo! Não falavam uma palavra! Suavam somente, como tampa de chaleira!

O Zé na sala, na cozinha, no quartinho ao lado, ouvia tudo calado, só pensava. Amanhã, se Deus quiser, vai ter forró o dia todo, e foi pegar a sanfona e sentou-se num tamborete, do lado de fora da casa; tocou Asa Branca majestosamente, arrastado, lento, saboreando uma sensação única. Afinal o primeiro filho só nasce uma vez!

Pensava que horas seriam, mas ninguém ali tinha relógio, só “padim” Bubú. Mas não iria lá só para perguntar as horas, olhou pra cima, mas tudo escuro, não tinha estrelas, só nuvens negras. Mas os galos já começavam a cantar, era em torno das quatro da manhã. E nada. Já tinham pedido para ele parar de tocar, pois a Raimunda se incomodou com o barulho.

– “Cumade”, vai demorar ainda pra nascer?

– Tá tudo difícil, o menino ainda nem apontou a cabeça!

Dona Rosinha revezava com D. Maria Cruz, sustentando a Raimunda por trás. Esse trabalho cansava. O mundo começava a sair de um escuro negro para um azul escuro, principiava a aurora e o farfalhar dos pássaros mais corajosos. De repente!

– A cabeça, a cabeça! Começou a apontar a cabeça! Raimunda já quase desmaiando de tanto esforço feito durante toda a noite, banhada de suor, garganta seca, horas de incertezas, angústias, o medo enfim.

– Faça mais força! – gritava comadre Antônia. Mas de onde tirar forças? Foram exauridas durante a noite em claro. Dona Rosinha e D. Maria Cruz tinha saído do estado hipnótico e entravam agora num estado de espanto contínuo de queixo caído.

– Saiu a cabeça, agora vem! Saiu! – E no chão de barro batido, coberto com lençóis, já ensanguentados, se acomodou o primeiro membro direto da família do Zé. Levou a primeira palmada, de muitas que ainda levaria na vida. O choro saiu com vontade, começou a respirar!

– É homem! – Zé ouviu, olhou o céu novamente, já clareava e galos já haviam parado de cantar, eram cinco e tanto, aquele chorinho lhe enchia o coração de alegria, uma alegria diferente, um filho macho! Correu pra dentro e pegou um foguete e foi soltar. Era costume avisar quando nascia um filho, soltando um foguete de um tiro para menino e, dois foguetes, mulher.

O velho, já estava acordado – não dormira direito – ouviu o primeiro tiro do foguete, esperou um tempinho com as oiças aguçadas, nada; pegou o relógio de bolso, consultou as horas, cinco horas e doze minutos da manhã. Foi ao caderninho com capa de couro e anotou: “Nasceu hoje as cinco horas e doze minutos desta manhã, dia 30 de janeiro de 1966 o primeiro filho de José Adauto da Silva. Nasceu com saúde, não sei como se chamará.” Foram dez horas de parto e sofrimento, pensou. Depois anotaria o nome do “netinho”. Já tinha um em mente.

– Zé, vem ver teu filho! – chamou comadre Antônia. – Zé entrou desconfiado, olhou primeiro para a Raimunda, e teve a petulante ideia de perguntar:

– Como tá tu “muié”? – Raimunda era só sorrisos, doloridos sorrisos, mas sorria.

– Estou melhor, doeu muito, também, olha o tamanho do bichão! – Zé via nas mãos de comadre Antônia, o filho, seu filho.

– Ei rapaz! Olha eu aqui! – O moleque desabou a chorar.

Raimunda disse que queria dormir um pouco, enquanto todos iam fazer a limpeza de tudo. O moleque foi colocado numa rede-de-meio de loninha listrada, azul com branco, com o fundo já remendado. As cabeceiras da rede – os punhos – eram de uma rede velha e, daqui a alguns dias estaria com o fundo todo amarelado de tantas mijadas. Uma teoria minha, diz que esse ângulo de quase quarenta e cinco graus da rede, influencie no formato da cabeça da criança, aparecendo aí o que chamamos de cabeça chata, tão típica nos nordestinos. Endossado por Câmara Cascudo.

Dona Carlota chegou, talvez umas nove horas da manhã, vinha ver o neto, não era o primeiro. Ela já tinha para mais de uma dezena de netos. Veio dar aquela ajuda que somente a mãe pode dispensar, além do conforto sentimental que a filha sente, vendo a presença e tendo os cuidados da mãe. Agora a flha teria uns trintas dias de resguardo, que não podia se levantar pra nada, somente para as necessidades, devidamente feitas num penico, dentro do quarto. Comia uma comidinha sem sal, com pouca gordura, geralmente dos tais capões, repouso absoluto, até o banho era dentro da tal bacia, com água morna; o umbigo do menino era limpo com “cachaça pura”, que era aquela primeira cachaça que sai do alambique, álcool puro! O sogro do Zé, tinha um alambique artesanal, de onde saiam boas pingas.

Não demorou muito, chegou a turma do conjunto de forró, cada qual com seu instrumento debaixo do braço. Disseram que os riachos estavam na vazante, estão baixando. Zé tinha pedido pra sua Tia Rosinha matar dois capões. Esses capões, além de serem “socados” com milho cozido, também eram “capados”. Sim! Capados! Cortava-se o frangote abaixo da cloaca com uma faquinha bem amolada e, metiam-se dois dedos e arrancavam os dois testículos, localizados no espinhaço do bicho, tendo que atravessar o frango inteiro até no lá. Os testículos são tamanhos de azeitonas pequenas. Para fechar o buraco no frango, costura com linha normal de costurar camisas e vai dando uns nozinhos, tudo a sangue frio. Depois para cicatrizar, cinza! Alguns não resistiam à tamanha tortura, e condenados à morte de qualquer maneira. João Tetô já estava impaciente com o mijo do menino, que não saia.

– Zé, cadê a danada?

– Vou pegar.

E em poucos minutos, somente no afinamento dos instrumentos, a garrafinha foi esvaziada; a vizinhança começou a chegar. Não pararam mais de tocar até o anoitecer. A tarde o sol deu o ar da graça, e o finalzinho do dia era realmente fascinante, com as nuvens rajadas de vermelho, roxo, amarelo, avermelhado. Os homens, esses, todos bêbados de alegria. Finalmente, Zé lembrou de uma coisa, esquecera a sela no galho lá no riacho. Na correria e,comadre Antônia dizendo que ia o resto a pé, veio puxando a égua, e a sela ficou lá.

O velho voltava ao caderninho de anotações e anotava: “É nascido… 30 de janeiro de 1966, primeiro filho de José Adauto da Silva e Raimunda Cardozo da Silva, com o nome de Cláudio José Cardozo da Silva, em homenagem ao meu grande amigo Claudionor Freitas”.

Cláudio Cardozo, Rio de Janeiro, 23 de março de 2003.

Dedico ao “Seu” Zé Adauto, meu pai, in memoriam, e dona Raimunda, minha mãe.

PS. quando escrevi essa crônica, meu pai ainda era vivo e não tive oportunidade de mostrar à ele finalizada, afinal foi ele mesmo quem fez a narrativa.

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